Pular para o conteúdo principal
UM NOVO MUNDO PELAS JANELAS DAS ÁREAS DE SERVIÇO

Ela estava com os olhos cheios. Cheios de fumaça, cheios de vodka barata, de cansaço, de pensamentos antigos, de pensamentos infelizes, de planejamentos destroçados, de sonhos esquecidos, de lágrimas incontidas, de vida desmoronada. A sua vida. A sua própria vida.

Ela, enfim, estava com o saco cheio. Muito cheio. E aquela área de serviço era pequena demais para todos aqueles problemas e aquela fumaça.

Tudo por que mesmo longe, ele estava por perto. Perto demais.

Mas ainda assim – ela pensou - Ainda que enfurnada em uma área de serviço pequena, escura, com um cigarro vagabundo e amassado pelo bolso da calça jeans, ainda assim eu estou melhor do que olhando para ele, olhando para todos aqueles idiotas na sala de estar que o adoram e o acham um amigo. Um grande amigo.

Farta. Ela estava farta.

- Oi – uma voz disse atrás dela.
Ela não respondeu, sequer se virou. Sentiu apenas seu sangue derreter e sua cabeça explodir.
Ele não se aproximou. Sereno, apenas disse – Não quer conversar? Você acredita mesmo que eu seria capaz disso? – ele perguntou, com um olhar ingênuo.
Ela permaneceu quieta, apenas olhando a cidade molhada, através da janela daquela maldita área de serviço.
- Você realmente não quer nem um amigo? – ele insistiu.
Ela se virou abruptamente, com ódio. Ódio e ódio e ódio. Cuspiu as palavras como se as mesmas fossem balas de artilharia, prontas para acertá-lo, prontas para derrubá-lo morto ao chão – Amigo? Amigo? Ora, vá se foder, seu grande babaca. Quem você pensa que é? Quem você pensa que é? – gritou, descontrolada – Você acha que eu quero mais alguma coisa com você? Você acha que isso é possível? Depois de toda a merda que você fez?
Ele encarou-a assustado, sem dizer nada.
- Você acha que eu tenho algum sentimento por você além de raiva e ódio e desprezo? Você acha? Você conseguiu, querido, você conseguiu, depois de muito tentar, foder de vez com a minha, com a sua, com a nossa vida. Você conseguiu foder com tudo. Mas, claro, você deve estar feliz, afinal você é especialista nisso, não? Você é especialista em magoar e foder e destruir. Especialista em egoísmo e dor.

Ele ficou apenas quieto. Sabia que não havia como voltar atrás. Sabia que ela estava certa. Sabia que ela não o perdoaria ainda mais uma vez. Sabia que ele sempre fodia tudo. Sempre.

Fitou-a uma última vez com um carinho incomum e cruel e virou-se de costas, deixando-a sozinha, também por uma última vez.

Ela apenas o viu ir embora para, depois, sentar-se no chão frio daquela área de serviço.

Ficou ouvindo as risadas e as conversas na sala de estar, desejando, como nunca desejou antes, que seus sonhos nunca mais se tornassem pesadelos. Nunca mais.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

OS PEQUENOS MILAGRES DE SÃO JORGE. PEQUENOS?

- Lembra? - ela perguntou, com um sorriso feliz. - Do que, exatamente? Ando bebendo tanto que minha memória dissolveu de vez - ele retrucou, divertido. - De quando nos conhecemos? Lembra? Ele sorriu por um tempão e ficou olhando para aquela garota linda, ao seu lado. Simplesmente a sua melhor amiga.A pessoa com quem ele mais se importava. - Lembra ou não, porra? - ela perguntou ríspida, exibindo a total falta de paciência. Típica. - Claro que lembro - ele respondeu - Claro que lembro. Clube Varsóvia e o Edu nos apresentou. - Sei. - Claro que sabe, você queria dar para ele. - Tonto. - Queria sim. - Imbecil. - Deixa isso para lá. O que você quer saber exatamente, tirando o porra do Edu? - ele perguntou, curioso com a pergunta. - Estávamos no Varsóvia e você me disse algo que achei tão curioso para o lugar, para o momento, para tudo o que acontecia naquela hora. - O quê? - ele perguntou - O que eu disse de tão formidável e extraordinário assim? - Falávamos sobre alguma c
POSSO PEDIR DESCULPAS? Eu vou atualizar isso aqui...estou no meio de uma tempestade de coisas para fazer e não tem sobrado muito tempo para fazer o que gosto...escrever, por exemplo...mas eu prometo escrever e amanhã, antes do carnaval, postar um conto sobre isso, inclusive, carnaval... Alguém espera?
POSSO NÃO DESISTIR? eu escrevo esse blog há quase sete meses. E não é fácil escrever estórias, desenterrar memórias, abrir segredos...e sabe o que recebo no e-mail? "Hey, sua média de visitas é tão baixa...você acha que alguém se interessa? Que alguém quer ler o que escreve? "...e eu preciso responder e pensar que sim. Não importa se é uma, duas ou três pessoas...quem perde um minuto do seu precioso dia entrando aqui é uma pessoa muito importante para mim...uma pessoa muito especial...porque quer saber o que escrevo e não há felicidade maior do que essa... obrigado...espero não desistir tão fácil assim...
E QUEM DISSE QUE AS COISAS NÃO PODEM SER ASSIM? APENAS SIMPLES... - Pára! Ela ouviu a frase e virou a cabeça rapidamente. Queria saber de quem era aquela voz doce e suave, porém firme e ligeira, que havia dito a tal palavra para ela. - Pára! Assim – ele repetiu. Ela encarou o dono da voz com uma certa irritação. Apenas para disfarçar. Ele era lindo. Olhos escuros, cabelos pretos longos, um queixo quase barbado, regular e quadrado, e um sorriso sensacional. Estimulante. Aparentemente sincero e interessante. Ela apenas o encarou em silêncio, agora sem qualquer irritação disfarçada. Ele sorriu simpático, querendo quebrar o gelo – A posição do seu rosto daria uma foto. Um retrato lindo, sabe? Por isso pedi, quer dizer, quase mandei, né? Você ficar parada. Queria congelar o momento. Ela segurou um sorriso, apenas para querer parecer ser um pouco mais teimosa. Um pouco mais difícil. Ele ofereceu uma bebida. - Não sei o que está bebendo – ela disse – Como posso aceitar? Ele continuou com o co
DANÇAS DE AMOR SEM TECHNICOLOR Eles dançavam. O espaço era pequeno, a sala do apartamento dele era extremamente tímida e o sofá, de tão puído, já nem existia mais. Ótimo - ele gostava de pensar - Assim sobra mais espaço para a dança . E era exatamente a dança que impregnava a sala naquela noite cheia de estrelas tristes e gente dizendo adeus. Enquanto isso, eles dançavam. Ritmo suave e doce, quente e confortável, como um vinho bom. O ruído dos calçados deslizando pelo piso da sala era insinuante e ritmado, constante e adocicado, um tango bom. E eles dançavam felizes. Felizes como há tempos não estavam, como crianças novas, descobrindo amor. Lá fora a cidade era pura madrugada e testemunha. Apaixonada. Era a própria noite veloz que sabia do seu fim, do seu destino triste, da sua morte prematura e repetitiva provocada pela manhã implacável que sempre insiste em nascer, para desespero dos boêmios, para desespero dos amantes, para desespero dos jovens e velhos, daqueles que sabem viver. M