Anoiteceu e ela se deu conta de que estava exausta.
Exausta.
Enfim,
ela reconheceu que estava exausta de tédio e sequer olhou o relógio naquele fim
de tarde, começo de noite.
Não,
ela definitivamente não queria nem saber as horas.
Não.
Nem
saber.
Não
queria saber quanto tempo havia passado desde que começou a sua maratona de
fazer vários “nadas”.
Sua
atividade exclusiva naquele dia.
Vários
“nadas”.
Vários.
Perdeu
tempo?
Não.
Definitivamente.
Acordou
e saiu da cama amassada; tomou seu café preto e amargo; leu o que o jornal
previa para o signo de Touro; aproveitou e viu o de Leão e o de Gêmeos; abriu o
notebook; entrou na internet; saiu do notebook; pegou o celular e mandou
mensagens sobre vários “nadas” para sua melhor amiga e fez fofoca e quis saber
as novidades com ela; tentou estudar; não estudou; tentou concentrar e
desconcentrou; cozinhou bobagens e comeu alguma coisa; bebeu algo gelado; ouviu
música; desistiu; ligou a televisão; ligou o spotify; desligou o spotify; assistiu
a um filme; um seriado; deu comida pros seus pets; tirou uma selfie solitária;
pensou no recente namoro desfeito; odiou ter estado com aquele idiota; lembrou;
esqueceu; enfim, muitos e vários “nadas” ao longo do dia.
Uma
infinidade de “nadas”.
Até
respirar fundo e decidir abrir o armário.
Sim,
a porra do armário.
Afastou
as roupas e resolveu revirar a caixa quadriculada que ficava escondida lá no
fundo do armário.
A
pequena caixa quadriculada repleta de detalhes.
Memorabilia
da sua própria vida.
Fotos,
várias Polaroids, duas fitas cassetes antigas, uma pétala de flor seca, alguns
desenhos espalhados, ingressos para shows, entradas de cinema e cartas, várias
cartas, mas uma, apenas uma, muito especial, ainda no envelope violeta.
Segurou
em suas delicadas mãos o papel antigo e quebradiço e sentiu o aroma do perfume de
quem a escreveu como se realmente estivesse ao seu lado.
Abriu
pela enésima vez...
“Oi,
Ou
tchau ou até breve. Nunca se sabe. Nunca. E não sei exatamente o que escrever
neste papel. Não. Realmente eu não sei. Quero que saiba que não estou feliz
pela forma como tudo aconteceu e terminou entre a gente. Não, eu não estou nada
feliz. Sei que devia ter falado com você e não apenas ter deixado esta carta
antes de ir, mas, você sabe, eu não podia mais insistir. Não, eu não podia
insistir mais. Você fez o certo e decidiu o que tinha que decidir. Julgou e
tentou evitar que algo entre nós terminasse da forma que foi. Eu estava errado,
fiz muita besteira e falei muitas coisas que jamais devem ser ditas. Eu sei. Mas
insistir seria ainda mais errado. Foi muita bobagem ter te perdido lá atrás. Muita.
E, realmente, o que tive foi medo e creio que nunca te achei na verdade. Não se
perde o que não se teve de verdade. Quer dizer, de verdade, porque para mim
você sempre foi minha e sempre será. Esteja onde eu estiver. Londres, como é o
caso, ou Estocolmo, Edimburgo, Paris, Bruxelas, o que seja. Qualquer lugar.
Qualquer lugar. Agora? Bem, agora você está feliz com ele e espero que assim
seja. Espero mesmo. Eu não queria ter brigado com nenhum dos dois. Não. Mas não
achei que fosse terminar assim. Não achei que devia ter falado tudo quando fiquei
bêbado naquela noite. Não. Devia ter ficado em silêncio como tantas outras
vezes. Mas você também não demonstrou nada quando eu falei da viagem. Não
falou. Devia ter falado, assim como eu também devia ter dito tudo antes. Bem
antes. Antes de ser tarde demais, de ter te ferido tanto assim e antes de este
avião partir. Principalmente antes de este avião partir. Parece e é, na
verdade, uma cena patética de um filme romântico de uma sessão da tarde
qualquer, mas é real. Esta carta e esta despedida são reais. Real e eu não
quero mais chorar na sua frente. Não. Não quero. E por favor, me perdoe por
tudo o que fiz e disse. Esconda ou destrua esta carta, pois se alguém a achar e
ler o seu conteúdo daqui a alguns anos, sinceramente vai ter a certeza de quem
a escreveu ou é um idiota ou trata-se de um roteiro de uma comédia romântica de
quinta categoria escrita por um babaca. Mas, os babacas amam por mais ridículo
que possa parecer. Enfim, fica este cassete também que eu gravei para você. São
aquelas canções que você ouvia enquanto eu te ensinava a dirigir, lembra? Séculos
atrás. Bem, cuide-se. Não vou te escrever de Londres e muito provavelmente nunca
mais nos veremos ou você não irá querer. Enfim, quem sabe? Quem sabe. Quem sabe.
Fica bem. Eu te amo e sempre vou te amar e me perdoe por nunca mais te
procurar. Tenho certeza que vai ficar bem Certeza.
Ass: você bem sabe quem”.
Ela
levou e apertou o papel junto ao seu peito, com cuidado para não molhar, pois
as lágrimas estavam todas fugindo daqueles olhos verdes e grandes, rolando
através do seu rosto sem qualquer pudor.
Sem
qualquer pudor.
Ela
sorriu da profecia dele e lembrou a última vez que o viu, há alguns anos,
atravessando a rua, acompanhado.
Ela
o viu.
Ele
não.
Ela
lamentou não ter gritado um oi.
Um
último oi poderia ser uma primeira palavra, mas ela não fez nada.
Nada.
Ela
apenas pensou como de costume, em fazer vários “nadas”.
Mas
não fez.
Não.
Mas
amar é coisa de adolescentes tolos, ela considerou enquanto fechava a caixa e a
colocava de volta em seu lugar, o fundo do armário.
De
volta ao fundo do armário a caixa quadriculada repleta de retratos e de vários
“nadas”.
Vários
“tudos”.
Ou
quase.
Basta
ter coragem e fazer.
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by Janusz
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