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ERA O QUE FARIA LOU REED



Clube Varsóvia, duas e meia da madrugada.
Mais uma noite.
Mais um cigarro.
Mais um chato chegando perto.
- Oi – o garoto loiro disse, com aquela voz quase bêbada e mole, derretendo as sílabas.
A moça alta de preto nem o olhou e ficou em silêncio. Aproveitou e brincou com o seu cigarro entre os seus longos e espessos dedos antes de dar mais uma tragada naquele Marlboro.
- Oi – ele insistiu – E aí? Tudo bem?
Ela pensou um instante, desistiu do cigarro, pegou o copo cheio de gim à sua frente e tomou mais um gole.
Ausência de resposta em retorno. “Ainda bem que há um DJ no local” – ela agradeceu em pensamento.
- Ah, fala alguma coisa – ele pediu – Você é bonita, sabe? Bastante bonita.
Ela tomou ainda mais um gole, deixou o copo no balcão e se virou na direção do garoto loiro.
Depois de alguns momentos o observando, disse – Oi. Está tudo bem sim. Exceto o incômodo.
- É, realmente. Um incômodo. Também acho que o volume está muito alto hoje. O DJ devia perceber isso.
Ela não acreditou e deduziu que só podia ser a bebida.
Impossível falta de percepção.
- É. Tem razão – ela completou condescendente – O som está alto hoje – disse reparando um pouco mais no garoto loiro à sua frente, meio bêbado, quase derretido.
- Sabe de uma coisa? Eu já te vi por aqui no Varsóvia outras tantas vezes. Já percebi você sim.
- É? – ela perguntou curiosa – E...?
Ele gostou da curiosidade que supostamente havia provocado nela e respondeu – Você está sempre de preto. Sempre de preto e sempre bonita. Eu gosto.
Ela sorriu e perguntou – Gosta? Fico feliz. Às vezes não percebemos, porém gostamos do que não conhecemos. Melhor, do que ainda não conhecemos.
Ele a observou mais de perto e ofereceu mais uma bebida.
Ela recusou.
Ele insistiu.
Ela foi firme.
Ele desistiu e decidiu beber sozinho.
Prosseguiu - Enfim, você é diferente. Bastante diferente. É alta, atraente, cabelos longos e bonitos, usa sempre preto, tem os olhos verdes brilhantes, tem as unhas adoravelmente pintadas e gosta de gim – ele definiu.
- E tem a voz rouca. Isso você não disse. Já esperava? – ela perguntou com um tom insinuante. Blue velvet.
Ele tomou um gole da sua bebida e respondeu – Gosto sim. Gosto sim. Eu, sinceramente imaginava. Pela sua altura sabe. Quero dizer, por tudo. Imaginei uma voz diferente, forte, sei lá, uma voz...
- ...baixo ou contralto? – ela interrompeu, divertida.
Ele a olhou com surpresa e nada disse.
- Então? Voz em tom baixo ou tom contralto? – repetiu.
Desconcertado ele disse – Não entendi. Baixo? Contralto?
- Deixa para lá, ela respondeu com um sorriso leve e provocante – A bebida, a música, enfim, deixa para lá.
- Não, pode dizer – ele insistiu - Fale.
Ela pegou mais um cigarro e o acendeu e deu uma tragada para só depois o encarar detida e suavemente e dizer – Veja, nem sempre se conhece uma pessoa pela altura, pela sua beleza, pelos seus cabelos, pelos seus olhos “verdes brilhantes”, pelas suas unhas cuidadas, pela sua roupa preta ou pelo seu gosto etílico. Nós precisamos conhecer a voz. A voz – finalizou com um sorriso.
Ele a olhou confuso, tentando interpretar aquele tom e o que estava acontecendo ali. Não entendeu nada, mas começou a perceber e duvidar.
- Então, agora, ouça mais do que fale. Pode ser útil quando nos encontrarmos aqui no Varsóvia de novo. E espero que nos encontremos de novo, mas sóbrios. Assim continuamos daqui – completou – Sem culpar a bebida pelos futuros acontecimentos – disse, dando um delicado beijo na testa do garoto loiro antes de deixar o balcão e ir em direção à saída do Clube Varsóvia.
Partiu com um sorriso de satisfação plena pela confusão. Divertindo-se pela dúvida e pelo que provocou.
Ele a olhou surpreso deixando o Clube Varsóvia. Olhou sem saber exatamente o que sentir, o que pensar, o que fazer, além de pedir mais uma dose de bebida e um cigarro enquanto ecoava em sua mente em uma espécie de looping excitante e desconhecido a frase “nem sempre se conhece uma pessoa pela altura, pela sua beleza, pelos seus cabelos, pelos seus olhos verdes brilhantes, pelas suas unhas cuidadas, pela sua roupa preta ou pelo seu gosto etílico. Nós precisamos conhecer a voz. A voz”.
Às vezes não percebemos, porém gostamos do que não conhecemos.
Melhor, gostamos do que ainda não conhecemos.
Ele?
Confuso.
Ela?
Ele?
Pura diversão em seduzir.

Era o que faria Lou Reed.


Photo by Aloña M. from FreeImages



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NUCA

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