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Mostrando postagens de 2020

A SAÍDA É LOGO ALI

OUÇA: casino || ponte Ela pensou que seria possível esquecer os seus problemas. Todos os seus problemas. Todos. Ela realmente acreditou e pensou que seria fácil. Simples como tomar um destilado forte, bebericar um café sem açúcar ou descolar uma anfetamina qualquer. Acreditou que pudesse esquecer tudo e, para tanto, apenas alguns trocados no bolso e um carro bastaria. Um carro que a levasse para longe dali e pudesse fazê-la seguir em frente e rasgar todas as estradas possíveis, todos os caminhos reais ou mesmo imaginários. E assim ela fez. Em uma sexta-feira úmida e cinza - como os seus olhos aliás - ela acordou bem cedo. Era madrugada, quase manhã. Encheu a sua mochila gasta de tantas viagens com uma porção de maços de cigarro, alguns pendrives com as suas músicas prediletas, livros de poesia barata e, claro, fotos antigas. Fotos suas e de seus amigos. Fotos que ela adoraria ver, caso sentisse saudade. Ela detestava ver fotos digitais e aquele conjunto de fotos impressas era um tesour

PARTINDO (LOSING MY RELIGION)

  OUÇA: clelia vega || losing my religion Life is bigger** It's bigger than you Era um trem extremamente velho. Muito mesmo. Um trem como tantos outros que poderia servir muito bem como cenário para tantos filmes com roteiros passados em épocas antigas. Trem antigo com estilo e um mistério noir não mais usual hoje em dia. Bem, era apenas um trem e ele estava dentro dele, passageiro e sem companhia.   And you are not me The lengths that I will go to The distance in your eyes Oh no I've said too much I set it up.   Ele observava através da janela e percebia a paisagem que corria acelerada lá fora. Uma paisagem cinza como chumbo e decorada com um chão úmido pela fina e interminável chuva que não se cansava de cair. Estava muito frio lá fora. Muito.   That's me in the corner That's me in the spotlight Losing my religion Trying to keep up with you And I don't know if I can do it   Por um instante, ele pensou que não era só a paisagem que corria ligei

LO(VE)NDON CALLING

OUÇA: gaba kulka || london calling O corpo dos dois parecia derreter. O corpo dos dois parecia derreter, tamanha a excitação, tesão, desejo e vontade que impregnava o ambiente naquele quarto. O suor transbor dava em cada poro de cada corpo. Cada poro. Cada corpo. Ele estava absolutamente enlouquecido e extasiado. Ela, por sua vez, estava em uma espécie de transe e delírio. Mãos e bocas e se ios e pernas e coxas e dedos e lábios e línguas e beijos e saliva se encontravam. Sem parar. Contínua e sofregamente. O aroma que pairava no ar era o de uma espécie de vinho raro. Beleza rara. Especial. Ela sentia o gosto dele na sua boca. Ele sentia o dela. Sutil e intenso. Integrado. Suor, paixão, delírio, toques e gemidos. Sexo ou amor, ou seja lá o que isso quer dizer. ... E, logo depois, eles deitaram e ficaram quietos, respirando o silêncio.  Por pouco tempo. Por pouco tempo. Ela, agitada como sempre, gargalhou brava e, abrupta, ligou o velho aparelho de som em decibéis altos. Bastante altos. 

VARINHAS MÁGICAS DISFARÇADAS EM PINCÉIS

OUÇA: ludovico einaudi || nuvole bianche O suor escorria pela sua testa. Muito. Gotas grandes e pesadas. Gotas nervosas escorrendo sobre o seu belo rosto. A respiração? A respiração estava ofegante. Bastante. Sem inspiração. A tela à sua frente permanecia em branco. Branco o suficiente para lhe dar medo. Muito. Medo de não criar. Medo de não gritar ao mundo tudo o que queria. Medo de as pessoas não saberem o que ela tinha a dizer. E precisava dizer. Muito. E o suor? Bem, ele ainda estava lá. E ela imaginava que para pintar o que queria, deveria ter toda a técnica, disciplina e plasticidade que não teve ao longo de muito tempo. Ao longo dos últimos anos. Ao longo dos últimos anos em que se prendeu. O suor escorria pela sua testa. Muito. Gotas grandes e pesadas. E a respiração estava ainda mais ofegante. Muito mais. E a tela continuava em branco. Intocada. Como uma alma virgem a ser desvendada. Lágrimas? Bem, elas também estav

LOOP

OUÇA: vacations || avalanche Ela entrou no apartamento e apenas observou. Tudo estava igual. Tudo estava absolutamente do mesmo modo que ela havia deixado quando saiu, um pouco antes do anoitecer. O copo americano ainda estava sujo de café. A garrafa de refrigerante estava aberta e, óbvio, já sem gás. O caderno com as anotações rabiscadas e com as páginas amassadas estava no mesmo lugar. Os lápis continuavam sem ponta e as canetas estavam distribuídas sem cuidado pelo tapete felpudo. Os vinis estavam espalhados ao lado da vitrola antiga, herança de seu avô. Os maços de cigarros estavam vazios perto da mesinha de canto. Algumas roupas insistiram em ficar penduradas junto a estante, na mesma posição que ela havia deixado para secar perto do meio-dia. Bem, ao menos para alguma coisa servia o sol naquele apartamento – ela pensou. O relógio ainda estava parado e a fez lembrar de algo que não iria fazer mesmo: comprar baterias. Cinco da madrugada. Ela apenas permaneceu imóvel na sala de se

AROMAS E SABORES

OUÇA:  sebastian roca || honestly Nem dez e meia da manhã de uma segunda-feira – ela pensou enquanto dirigia o seu carro pela Avenida Central. Nem dez e meia da manhã de uma segunda-feira e ela relembrou o dia. Repassou o dia como se já tivesse acabado. Como se fosse muito. Como se fosse longo. Como se os segundos fossem séculos. Como se os segundos fossem dias. Pela janela do seu carro, ela observou o sol implacável da manhã de inverno tentando invadir sua retina. Retina fixa na imagem dele. Memória congelada nas horas que teve. Madrugada inquieta e turbulenta, repleta de desejos, sonhos, vontades e poesias. Repleta dele. Repleta dela. Juntos. Como um. Você É a poesia – ela lembrou do que ele falou antes de ir. Enfático. Ela sorriu. Estava leve. Você É a poesia – repetiu o pensamento. Nem dez e meia da manhã de uma segunda-feira. Ela desejou que o tempo parasse e pudesse sentir novamente tudo o que sentiu na madrugada. Tudo. Exatamente tudo. Cada detalhe. Cada sensação. Cada aroma. Ca

QUANTOS ACORDES TEM UMA BALADA?

OUÇA:  fazerdaze || little uneasy - Você está tenso, né? – ela perguntou enquanto olhava para ele, todo encolhido no canto da sala, mexendo e brincando com o copo americano vazio nas suas mãos. Ele parou o que estava fazendo e a olhou com certa seriedade e balbuciou – Tenso? – perguntou e prosseguiu agora em alto som – Tenso? Tenso? Claro que não. Não há razão para isso. Ela sorriu e o compreendeu. Ficou em silêncio. Ele apoiou o copo vazio sobre a mesinha de canto ao seu lado e se levantou. Deu algumas voltas em círculo pela sala, esquecendo completamente o que ela havia dito anteriormente. Completamente longe. Distante demais. Ela apenas o observava em silêncio, quieta e paciente. Apenas esperando ele falar alguma coisa. Apenas esperando. - Então... – ele começou a falar, para na sequência emendar - Ah, esquece – concluiu, sem nada acrescentar. Após alguns segundos ela falou - Não te entendo, sabia? – disse, em tom extremamente doce. Ele parou e a encarou novamente e disse – O quê? O

ERA O QUE FARIA LOU REED

OUÇA:  antoine diligent || nobody loves u Clube Varsóvia, duas e meia da madrugada. Mais uma noite. Mais um cigarro. Mais um chato chegando perto. - Oi – o garoto loiro disse, com aquela voz quase bêbada e mole, derretendo as sílabas. A moça alta de preto nem o olhou e ficou em silêncio. Aproveitou e brincou com o seu cigarro entre os seus longos e espessos dedos antes de dar mais uma tragada naquele Marlboro. - Oi – ele insistiu – E aí? Tudo bem? Ela pensou um instante, desistiu do cigarro, pegou o copo cheio de gim à sua frente e tomou mais um gole. Ausência de resposta em retorno. “Ainda bem que há um DJ no local” – ela agradeceu em pensamento. - Ah, fala alguma coisa – ele pediu – Você é bonita, sabe? Bastante bonita. Ela tomou ainda mais um gole, deixou o copo no balcão e se virou na direção do garoto loiro. Depois de alguns momentos o observando, disse – Oi. Está tudo bem sim. Exceto o incômodo. - É, realmente. Um incômodo. Também acho que o volume est

NÃO SÃO TEMPOS COMO QUAISQUER OUTROS

OUÇA:  spang sisters || king prawn the 1st Ela jogou o livro de lado irritada, ajeitou os cabelos tortos pela cama e levantou-se. Aflita. Ela estava aflita e sem paciência. Nenhuma paciência. Andou de um lado ao outro do quarto procurando algo para pensar, algo para tocar, algo para lembrar, algo para fazer. Não pensou em nada ou, infelizmente, pensou sim tão logo percebeu o baú cor de palha encostado junto a parede. Lembrou das dezenas de fotos e bilhetes e bobagens que estavam ali guardadas. Pensou em abri-lo e considerou que esta seria uma boa ideia. Aproximou-se do baú e percebeu o que estava prestes a fazer. Parou brusca e riu da própria tolice em achar que as velhas lembranças podiam ajudar, ainda que em desespero. Não, nada que lembrasse aquela pessoa poderia ser bom naquele momento - considerou. Culpou o tédio pela burrice. Voltou a si. Sorriu e agradeceu a sei lá quem por ter voltado ao seu juízo normal a tempo. Saiu do quarto. Foi em direção a

A GAROTA VESTE PRETO

OUÇA:  mini dresses || sad eyes Tr ê s e meia da manh ã e l á estava ela. Acesa. Acordada. Acordada em plena madrugada, ainda mais uma vez. Estava em p é observando a cena de guerra em que havia se transformado o seu quarto. Cena de horror. Roupas por todo lado. Uma pilha enorme de pe ç as, parte espalhada sobre a cama e parte jogada no ch ã o, pr ó ximo da parede em que estava apoiado o estojo do seu violino. Tudo por todo o lado. Roupas por todo o canto. Roupas pretas, em sua grande maioria. Sua cor predileta. A sua cor predileta. E ela estava acesa. Muito acordada à s tr ê s e meia da manh ã . Sabia, no fundo, que estava perdendo tempo ali, parada e observando, pois metade daquelas roupas n ã o ia caber na mala que ela (tentava) preparar para encarar aquela viagem. Pensou - “ ... mas... ainda h á tempo. A porra do ô nibus vai sair à s oito. Ainda d á tempo ”. E havia mesmo tempo. Tempo suficiente para tudo. - Menos para n ã o sentir medo –