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LOOP


Ela entrou no apartamento e apenas observou.
Tudo estava igual.
Tudo estava absolutamente do mesmo modo que ela havia deixado quando saiu, um pouco antes do anoitecer.
O copo americano ainda estava sujo de café.
A garrafa de refrigerante estava aberta e, óbvio, já sem gás.
O caderno com as anotações rabiscadas e com as páginas amassadas estava no mesmo lugar.
Os lápis continuavam sem ponta e as canetas estavam distribuídas sem cuidado pelo tapete felpudo.
Os vinis estavam espalhados ao lado da vitrola antiga, herança de seu avô.
Os maços de cigarros estavam vazios perto da mesinha de canto.
Algumas roupas insistiram em ficar penduradas junto a estante, na mesma posição que ela havia deixado para secar perto do meio-dia. Bem, ao menos para alguma coisa servia o sol naquele apartamento – ela pensou.
O relógio ainda estava parado e a fez lembrar de algo que não iria fazer mesmo: comprar baterias.
Cinco da madrugada.
Ela apenas permaneceu imóvel na sala de seu apartamento, olhando a cena.
Tudo estava igual.
Tudo estava absolutamente do mesmo modo que ela havia deixado quando saiu horas antes, um pouco antes do anoitecer.
Largou a bolsa no chão, desprendeu seus cabelos, descalçou o par de tênis e procurou, sem sucesso, um cigarro no bolso do casaco.
Agradeceu não ter encontrado um.
Respirou fundo e foi em direção a janela.
Olhou com atenção o desenho da cidade que se formava à sua frente.
Suspirou ao perceber as estrelas sumindo bem devagar, pouco a pouco engolidas pelo céu alaranjado de mais um dia verão que estava prestes a nascer.
Ela estava de volta ao lar.
De volta ao início.
Lembrou de cada detalhe da noite que estava morrendo.
Cada detalhe daquela festa no Clube Varsóvia.
Lembrou dos olhos, lembrou do corpo, lembrou do toque, lembrou do perfume, lembrou da vontade, lembrou da troca, lembrou do desejo, lembrou dos lábios, lembrou da dança, lembrou da entrega, lembrou das palavras, lembrou da sinceridade, lembrou da despedida e lembrou do adeus.
Lembrou do adeus.
Sim, ele ia mesmo embora.
Tentou não chorar.
Conseguiu.
Conseguiu segurar.
Por pouco tempo, é verdade.
Ela respirou fundo e tentou sorrir, afinal, estava de volta ao lar.
De volta ao seu apartamento.
De volta ao início.
De volta ao seu mundo.
Como se o roteiro do filme de sua vida fosse marcado por sequências de altos e baixos, rompantes abruptos, relâmpagos velozes e alegrias imprevisíveis, nada durável.
Nada.
Como se tudo se resumisse a um loop sem sentido de uma bolha de sabão.
Mesmo cansada, ela decidiu não dormir.
Não.
Ah, se eu tivesse tido a coragem de ter dito tudo o queria – ela pensou.
Pensou, mas não disse.
Determinada e com raiva, ela decidiu que ainda não iria dormir.
Não.
Ela decidiu esperar.
Decidiu esperar muito acordada até o telefone ou o interfone, foda-se, tocar e a sua vida tão parecida com um loop sem sentido de uma bolha de sabão pudesse estourar.
Como se aquela bolha de sabão pudesse simplesmente estourar e aquele cansativo loop parasse de ser parte do cenário, ao menos uma vez em toda a sua vida.
Respirou fundo e, então... adormeceu.
Ela apenas adormeceu.
Loop.



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NUCA

Ela entrava em transe. Transe total. O lábio de Fernanda em sua nuca a deixava completamente feliz. Muito feliz. Muito feliz. Não existiam mais as más notícias. Não. Definitivamente não. Sem contas, protestos, cobranças ou ligações indesejadas. Nada. Nada a perturbar. Existiam apenas os lábios de Fernanda em sua nuca. Lábios deliciosos e densos. Intensos. Sempre pintados de uva. Sempre lindos. E os arrepios. Muitos arrepios. E ela entrava em transe. Transe total. O lábio de Fernanda em sua nuca a deixava completamente feliz. Muito feliz. Muito feliz. Não existiam mais as más notícias. Não. Defitivamente não. Havia um aroma de uva no ar. Um perfume. E palavras sussuradas na dose certa. Na dose certa. E ela entrava em transe. Transe total. O lábio de Fernanda em sua nuca a deixava completamente feliz. Muito feliz. E molhada. E o abraço que vinha depois era como um gatilho para uma boa noite. Toques. Reflexos. Seios.
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