Pular para o conteúdo principal
ASHES TO ASHES, DAVID BOWIE, ASHES TO ASHES...

- Você quer comer algo? - Letícia perguntou à Clara, assim que entrou no apartamento em que morava.
- Não - respondeu Clara, deixando evidente seu constrangimento.
O perfume no apartamento era quase igual ao perfume de seda verde descrito por Patricia Highsmith no livro Carol. Perfume de seda verde. Interessante definição para um cheiro inebriante, envolvente, devasso ou mesmo puro.
- Tem certeza? Devo ter alguma coisa na geladeira, além de vodka vagabunda.
- Não se preocupe Letícia. Por favor. Posso fumar?
- Claro - concordou Letícia, indicando com seus dedos longos, suaves, o cinzeiro colorido que estava largado no chão.
Os dedos de Letícia eram sensacionais. De uma plástica belíssima. Longos, uniformes, delicados. As unhas, médias, sempre aparadas e bem cortadas. Não importava a falta de grana ou a porra do stress ou mesmo a falta de tempo. Ela, vaidosa, sempre dava um jeito de manter as suas unhas e mãos lindas como um retrato de outono. Um jardim de outono.
- Você não limpa isto nunca? - perguntou Clara, assustada com as bitucas e as cinzas deixadas no cinzeiro.
- Ashes to Ashes / Funky to Funky / You Know Major Tom´s Junkie - cantarolou - David Bowie. Lembra?
- Detesto.
- Detesta?
- Sim. Detesto.
Letícia parou por um minuto e a lembrança veio nítida na sua cabeça. Aniversário de sei-lá-quantos anos de Clara e ela havia dado um vinil do Bowie. Young Americans. E as palavras foram claras "adoro Bowie". "Tudo o que ele fez ou faz ou fará. Incondicionalmente".
- Há quanto tempo estamos juntas? - perguntou Letícia, enquanto tirava a camisa bordô.
- Juntas como? De conhecer ou do primeiro beijo ou da primeira transa?
- Do primeiro beijo.
- Ah, muitos anos.
. Tanto assim? A ponto de perdermos até referências?
Clara apenas concordou com a cabeça, preferindo o silêncio por um instante. Sabia que nunca poderia deixar de fumar. Em determinados momentos, como aquele, manusear um cigarro era a salvação. Melhor do que conversar sobre o que não se quer com quem não se deseja.
- Melhor eu ir - disse Clara, após dar sua última e longa tragada.
- Nos vemos?
- Talvez - respondeu, sabendo que certamente aquela não era a noite da despedida, a noite do epílogo, a noite do grand finale. A noite em que ambas derramariam talvez um oceano de lágrimas, menos por pesar, mais por arrependimento em sepultar o que já estava irremediavelmente morto e fodido.
Ao perceber que Clara saiu do seu apartamento, sem nem ao menos um beijo, um olhar, um gesto de carinho, Letícia sentiu uma pontada. Uma pontada de dor e choro. Uma pontada de amor perfeito, perfeitamente estragado e destruído pela rotina e pela vaidade e pelo orgulho e pela maldade e pelo descuido. Olhou pela janela e viu que a chuva e as nuvens estragavam a vista para a lua.
- Logo hoje.
Decidiu, naquele momento, que ao menos por uma noite, David Bowie seria seu amante. O melhor e o maior de todos.

Apenas por aquela noite...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Você

leia e ouça: U2 | bad Você. Você é intensa demais, e eu a amo. Muito. Você. Sim, você mesmo, você sabe a quem me refiro: VOCÊ! Você tem os cabelos mais desgrenhados, bagunçados e divertidos do mundo. E eu amo. Você. Cada detalhe, cada aroma, cada toque, cada TUDO. Nós. Tem os olhos mais verdes do mundo, e eu a amo. Amo. Amo você. Minha esmeralda. Minha pequena. Minha mãozinha guia. Você. Você. Apenas você! A mulher que mais merece ser cafuneada no universo, na galáxia, em tudo. Toda hora, todo dia, todo tempo. Você. Eu a amo. Você. Você mesmo. Tem força, tem garra, tem voz, tem presença, tem vida, tem alegria, tem coerência, tem sorriso, tem empatia, simpatia, tem tudo. Pequena, mas gigante. Você. Eu sou muito honrado de receber e dar seus super likes . Te laqueio todo dia, toda hora. Você é simplesmente essencial, especial, única. Você… simplesmente e unicamente VOCÊ existe para mim. Nada mais. Mais ninguém, E por mais burrices que eu faça, que eu repita, que eu erre, imbecil que so...

Going Down

leia e ouça: lou reed || going down “... Time's not what it seems. It just seems longer, when you're lonely in this world. Everything, it seems, Would be brighter if your nights were spent with some girl Yeah, you're falling all around. Yeah, you're crashing upside down. Oh, oh, and you know you're going down For the last time …” Lou Reed || Going Down E o sonho avançava. Apenas avançava. A noite tinha apenas começado. … - Ei mocinha. Mocinha? Me ouve? Ela chacoalhou os cabelos castanhos desgrenhados, um monte de nós sem sentido, apenas ela, virou o rosto confuso e encarou aquele sujeito grande, intimidador, com cara de bravo e que estava imóvel à sua frente, um verdadeiro brusco naquele cenário. - Então, me ouve? Está me ouvindo? - aquele grandalhão insistiu - Me ouve, porra? - disse, de modo grosseiro. Ela olhou com um tanto de medo e sem saber exatamente o que fazer, o que dizer, o que mexer, o que responder, nada disse. Apenas, nada disse. - Você entende? É surd...

PARTINDO (LOSING MY RELIGION)

  OUÇA: clelia vega || losing my religion Life is bigger** It's bigger than you Era um trem extremamente velho. Muito mesmo. Um trem como tantos outros que poderia servir muito bem como cenário para tantos filmes com roteiros passados em épocas antigas. Trem antigo com estilo e um mistério noir não mais usual hoje em dia. Bem, era apenas um trem e ele estava dentro dele, passageiro e sem companhia.   And you are not me The lengths that I will go to The distance in your eyes Oh no I've said too much I set it up.   Ele observava através da janela e percebia a paisagem que corria acelerada lá fora. Uma paisagem cinza como chumbo e decorada com um chão úmido pela fina e interminável chuva que não se cansava de cair. Estava muito frio lá fora. Muito.   That's me in the corner That's me in the spotlight Losing my religion Trying to keep up with you And I don't know if I can do it   Por um instante, ele pensou que não era só a paisagem que corria l...

MÚSICAS, CANÇÕES OU... TANTO FAZ...

Músicas? Canções? Tanto faz. Às vezes é uma coisa. Às vezes outra. O inverso. Mas, tanto faz. Tanto faz. Com erro de português ou não. Com lágrimas... ... ou não. E ela? O adorava. Muito. Mesmo sabendo do seu ridículo gosto por música pop. Música para um babaca dançar. Nada demais. Músicas? Canções? Tanto faz. Às vezes é uma coisa. Às vezes outra. Com lágrimas... ... Ou não. Ou não... - E você? – ela perguntou. Ele fez apenas uma cara de surpresa – Como? - respondeu. - E você? Já ouviu True? Ele a olhou com espanto e surpresa. - Spandau Ballet? Ela sorriu. Ele também. - Ouviu? – ela prosseguiu. - Idiota – ele respondeu de forma grossa. Ela apenas sorriu. Sabia quem era ele. Sabia mesmo. Mesmo depois de tantos e tantos anos. Tantos anos... Tantos anos...

Quando Você Ama…

  leia e ouça: surf curse || freaks “...Don't kill me just help me run away From everyone I need a place to stay Where I can cover up my face Don't cry, I am just a freak I am just a freak I am just a freak I am just a freak…” (Surf Curse || Freaks) Quando você vive, você erra. Todos nós. Todos. Todos nós erramos, de um jeito ou de outro. Faz parte. Quem nunca errou? Quem nunca? Só quem não viveu. Quando você vive, você se expõe e acaba errando, cedo ou tarde. Mente quem diz que nunca errou, uma vez que certamente também errou em algum momento da vida e tenta negar isso. Eu? Se eu errei, omiti e menti? Sim. Certamente. Muito. Mais do que seria razoável, muito mais do que seria razoável. E só os Deuses sabem como foi difícil e errado e como me arrependo. Arrependimento? Muito. Arrependimento real e verdadeiro. Mas, a verdade é o mais importante. Sempre. E demorei a entender isso. Demorei MUITO. Muita porrada para entender isso. Muita porrada para entender isso. A transparência. ...