Alta madrugada. Chovia demais. Muito mesmo e ele, bem, ele
estava em um bar qualquer no centro velho da cidade. Sozinho para variar.
Sozinho naquela alta madrugada. Sozinho, como sempre. Sozinho como nos últimos
dias, nos últimos tempos, nas últimas noites. E chovia muito lá fora e ele
apenas deixava o tempo passar observando a xícara lascada à sua frente com um
café vagabundo, morno e rarefeito que ele conseguia engolir apenas pelo vício
inexplicável em cafeína. Cafeína e cigarros. Sem mais álcool ou qualquer outra
forma diferente de fugir. Apenas cafeína e cigarros. Foi o que restou. E ele
estava em um bar qualquer no centro da cidade. Insônia pesada e ele, tolo,
apenas AINDA insistia em pensar no que fazer, para onde ir, como conseguir
consertar as coisas que quebrou ao longo do tempo. Bobagens cotidianas que não
pagam as contas (muitas, aliás) e não resolvem porcaria nenhuma na vida de um
sujeito normal. Sérias bobagens cotidianas. Falar
em sair do buraco é fácil. Difícil é realmente conseguir. Muito difícil –
ele costumava pensar. Otário. Fraco. Porém os seus devaneios “adolescentes”
foram interrompidos ao perceber uma voz forte e grave emanada em alto tom ao
lado direito do balcão do bar.
- Boa noite seu João querido. Tudo bem? Que noite dos infernos
para trabalhar não? Ai que porre. Assim os clientes fogem. Quero morrer – disse
um travesti alto, todo ensopado e todo montado em mínimos trajes de cor
vermelha e longos cabelos descoloridos – Me dê um café seu João, por favor? Mas
um café decente e não aquilo que o senhor serve todas as noites – continuou a
alegre figura, íntima do ambiente e conhecedora do horroroso café daquele bar.
Ele desviou o olhar e finalizou o seu café. Acendeu um cigarro.
Ela virou-se para ele enquanto se secava com parcos guardanapos
de papel e disse – Hey gatão, tomando o café do seu João? Corajosa a criança,
hein? Gosto muito disso. Homens corajosos sem medo do perigo. Gosto muito.
Prazer, meu nome é Sam.
Ele apenas assentiu com a cabeça, sorriu sem graça e nada disse.
- Um gato comeu a língua do gato? – perguntou irônica a
inusitada Sam.
Ele a olhou com serenidade e respondeu – Não. É que não tenho
nada a dizer agora Sam – completou.
Ela olhou para o alto e disse em um tom de voz meio masculino,
meio feminino, meio nada a ver – Ai céus, que porre. Que ausência de vontade
hein, meu gato? Que saco. Fica aí, como um bebê chorão, olhando para as xícaras
sujas e tomando o café horrível do seu João.
- Ei - interrompeu o seu João – O meu café não é tão ruim assim.
Que absurdo. Que esculhambação – reclamou.
Sam olhou para o alto, levantou as mãos bem cuidadas e repletas
de anéis, deu uma leve bufada e respondeu – Ok, seu João, ok. O seu café é uma
delícia. O melhor do centro velho da cidade. Um café gourmet. Não vivo sem ele.
Se eu não trabalhasse aqui em frente, ainda assim iria vir todas as madrugadas
só para degustá-lo – brincou.
Seu João grunhou qualquer palavrão e saiu de cena. Ele apenas
riu da situação.
- Olha meu gato – retomou Sam, enquanto dava o primeiro gole em
seu café – Nem vou te oferecer um programinha porque já vi qua a tua onda é
outra e teu baixo astral está demais. Isto pega. Quero distância.
- Sei – ele respondeu – Agradeço.
- Então, mas um conselho eu posso te dar. E que se dane quem
fala que conselho não se dá – Sam disse segura.
- Ok – ele respondeu – Pode aconselhar. Pior não fica. Pode
apostar.
Sam o olhou de frente e apenas disse – Volta logo para ela gato.
Resolve este nó que está por aí neste teu peito flácido e vai embora. Pára de
ficar tomando café em botecos sujos apenas pensando nela e na sua vida. No que
poderia ser que não foi. Pára de lamentação. Vai logo resolver a tua vida e
mexe esta bundinha. Gostosa, aliás – emendou - Anda para frente porra –
finalizou antes de “matar” em um gole a sua xícara de café.
Ele a olhou com surpresa e nada respondeu.
- Bem, meu amor, já tomei este café horrível e estou pronta para
acabar este inferno de madrugada. Vamos à luta. Fica bem meu bombom. Pára com
esta cara. Ninguém tem pena de ninguém. Seu João, eu deixei o dinheiro aqui em
cima do balcão – completou aos gritos, saindo para a rua com o seu guarda chuva
também vermelho.
Ele ficou ali, como um bobo, olhando Sam sair debaixo da chuva e
sem saber como ele poderia ser tão transparente para um desconhecido e tão
fechado para quem verdadeiramente amava.
Otário.
Acendeu mais um Marlboro e decidiu ir embora. Decidiu parar de
tomar café naquela madrugada em um café no centro velho da cidade e decidiu uma
coisa. Mexer a sua bunda. Mexer a sua bunda. Mesmo embaixo da tempestade e seja
para que lado for...

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