O cenário naquela praia quase deserta era tal qual o de um filme
antigo e bem elaborado. Lindo. Lindo demais. Um filme de arte. Um filme de arte
em preto e branco. Visconti? Quem sabe. Fellini? Talvez. Qualquer diretor?
Muito provável. Arte e paixão. E, no meio de tal cenário apaixonadamente
devastador e cinematográfico lá estavam elas, Marcela e Fernanda, totalmente
alheias a arte, totalmente alheias as cenas de cinema e filmes antigos. Lá
estavam ela apenas deitadas na areia fofa da praia, observando o céu e a
aproximação certeira das nuvens cinza, o típico sinal de mais uma impiedosa e
demolidora tempestade de verão batendo à nossa porta.
- Você devia parar de fumar maconha – sugeriu Marcela, cínica,
logo após dar o último trago no baseado em sua mão, sem oferecer á sua amiga um
último tapa.
- Claro, Marcela, apenas para você fumar todo o resto da erva
existente no mundo por mim, certo? – perguntou, com fina ironia, Fernanda.
Marcela riu e nada disse.
- Não estou certa, puta? – disse brincando Fernanda.
- Não. Não está certa não. Preocupo-me com você para caralho,
você sabe disso – disse Marcela, levantando os seus óculos escuros para encarar
Fernanda, óculos, aliás, absolutamente desnecessários, considerando o tom cinza
escuro que começava a predominar sobre as suas cabeças naquela tarde na praia,
com as nuvens cinza dando um chega para lá fabuloso no velho e cansado amigo
sol de verão.
Fernanda a ignorou, completamente.
- Não acredita? – insisitiu Marcela.
- Acreditar em quê? No fato de você se preocupar comigo ou de
querer fumar sozinha toda a erva existente no hemisfério sul?
- Claro que é sobre eu me preocupar com você, porra. Estamos
falando do quê? Da seleção brasileira? – emendou Marcela, irritada.
- Porra Marcela, você me irrita sabia? – respondeu Fernanda
séria – Você me trata como criança. Você me trata como se eu fosse uma porra de
uma criança perdida. “You´re Lost Little Girl”. Sempre orientando, sempre
dizendo para não beber demais, para não fumar demais, para não beijar
vagabundos demais, para não sofrer demais, para não picar demais será que não
vê que isso cansa? – explodiu.
Marcela a olhou com surpresa. Nada disse.
- Você me controla o tempo todo. Não parece minha amiga de
infância, uma irmã, que amo há tanto tempo. Parece minha mãe. Pára de me
controlar um pouco. Deixe-me viver um pouquinho. Acompanhe-me nesta viagem e
fim de conversa. Pode ser? Pode ser? – insistiu.
Após um breve silêncio, Marcela apenas disse, em tom baixo e
sério - Você precisa parar com aquelas malditas pílulas cor de rosa, sabia?
Você precisa parar de usar aquela merda de estilete e de vomitar o tempo
inteiro por culpa, por bebedeira, por nervoso ou whatever. Você precisa parar
de ir longe demais. De experimentar demais. É difícil entender? Você precisa
apenas tentar ser feliz por você mesma. Só isso. Apenas isso. Dá para entender
antes que seja tarde demais? – perguntou, aflita e segurando as lágrimas.
Fernanda olhou para o céu e se levantou. Chacoalhou a areia das
suas lindas pernas e disse séria – Vai chover o mundo. Talvez o céu desabe
sobre nossas cabeças hoje. Vou para o chalé. Encontro você por lá quando você
quiser.
- Fernanda... – disse Marcela – Tem uma canção antiga que diz
que certas dores te cortam como uma faca e por mais que você durma, a dor te
espera a noite inteira e ela, com certeza e no dia dela, vai pegar você.
Entende o que quero dizer? – perguntou.
Fernanda assentiu com a cabeça, escondeu o rosto e disse com a
voz disfarçada – Vou indo. Vá logo também. Não quero que a merda de um raio te
toste da forma como você torra o meu saco e da forma como você, realmente,
merece.
- Você entendeu? – insisitiu Marcela – Só quero saber isso.
Fernanda apenas concordou com a cabeça, mais uma vez e completou
– Vou indo.
- Também já vou indo – disse Marcela – Mas antes quero apreciar
um pouco o céu cinza antes que ele caia sobre nossas cabeças e, por favor,
deixa na minha bolsa o espelho e, você sabe mais o quê...
Fernanda fez o que Marcela pediu e, engolindo o choro foi
embora, em direção ao chalé.
Enquanto partia, Marcela a observava e pensava de forma terna,
carinhosa, amorosa – Te amo sua filha da puta. Apenas te amo e da forma como
você sequer imagina. Perceba isto imbecil antes que o céu caia sobre nossas
cabeças. Antes que o céu caia sobre nossas cabeças como Asterix tanto
temia...
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