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COMO DIZIA A MINHA AVÓ (OU O MAIOR CEGO É AQUELE QUE NÃO SABE AMAR)

Ainda não havia começado a tempestade. O céu, no entanto, resolveu discordar do sol e daquele calor abafado e sufocante e se tornou totalmente negro. Negro como a noite. Cinza e profundo como os maiores medos. E ela estudava canto lírico. E não queria deixar o conservatório sob a ameaça daquela tempestade. Ela não queria se molhar. Não queria perder a voz, ainda mais uma vez. Resolveu então, esperar. Apenas isso. E enquanto esperava, ele se aproximou e perguntou, de modo simpático.

- Talvez o mundo acabe hoje – ele disse, com um sorriso.
Ela olhou em sua direção e mal acreditou que ele havia, pela segunda vez em uma mesma semana, iniciado uma conversa com ela – Tem razão. Se chover todo esse cinza, aí estamos afogados. Literalmente.
Ele sorriu novamente, um sorriso ainda mais bonito do que o primeiro e perguntou - Vai esperar a chuva? Talvez ela demore a chegar e a ir embora.
- Vou esperar sim. Com certeza eu não vou chegar a tempo de pegar o ônibus e não estou nem um pouco a fim de me molhar inteira. Tenho um recital no próximo final de semana e quero as cordas vocais inteiras.
- Muito bem. Você tem toda a razão em preservar a maravilha que é a sua voz. Você não pode privar o mundo dela. Pode apostar.
Ela olhou para ele constrangida e disse, sentindo suas bochechas ficarem totalmente vermelhas – Maravilha? Minha voz? Como você sabe? Nunca me ouviu cantando.
- Quem disse? – ele perguntou.
- Eu. Não me lembro de ter cantado com platéia. Exceto nos recitais na casa da professora Paulina. Mas você sequer é aluno dela.
Ele fez uma deliciosa cara de culpado e respondeu - Teve um dia, já faz um tempo, que eu fiquei escutando você cantar no estúdio. Sozinha. A tarde toda. Linda e sozinha. Fiquei encantado com a sua voz, o seu modo de cantar. É tão triste. É tão doce. É tão lindo. Encantador mesmo. Mal pude acreditar em meus ouvidos. Somente um anjo poderia cantar assim.
- E como você sabe que era eu que estava cantando? Podia ser qualquer outra garota – ela perguntou, tímida.
Ele riu e respondeu – Ah, querida. Eu tenho outros meios de VER e SENTIR as coisas, que não por meio desses meus cansados olhos cegos.
Ela ficou absolutamente sem graça pela pergunta idiota e respondeu – Desculpe. Não quis ser indiscreta ou estúpida ou cretina ou qualquer outra coisa.
- Relaxe. Não precisa se desculpar. Não há nada de errado nisso. Eu sou cego e você canta bem...
- ... e você é muito gentil – ela o interrompeu
Depois de alguns segundos de silêncio, ele completou - ... e você é linda! Absolutamente linda! – ele elogiou, com um brilho notável no canto dos lábios.
Ela ficou lá, parada, olhando para aquele garoto lindo à sua frente, mal acreditando que ela a achava linda. Disse, de forma rápida e sem pensar – Vamos tomar um café na padaria do Gero? – convidou.
- Mas e a chuva? Ela já começou. E a sua voz?
- Não tem problema. Canto lírico é algo tão lindo que eu posso cantar com o coração. Basta ele estar feliz.
- E ele está?
Enquanto o segurava pelo braço para ajudá-lo a descer as escadarias do conservatório, ela respondeu, baixinho – Você nem imagina o quanto...nem imagina...
E ele apenas sorriu...



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NUCA

Ela entrava em transe. Transe total. O lábio de Fernanda em sua nuca a deixava completamente feliz. Muito feliz. Muito feliz. Não existiam mais as más notícias. Não. Definitivamente não. Sem contas, protestos, cobranças ou ligações indesejadas. Nada. Nada a perturbar. Existiam apenas os lábios de Fernanda em sua nuca. Lábios deliciosos e densos. Intensos. Sempre pintados de uva. Sempre lindos. E os arrepios. Muitos arrepios. E ela entrava em transe. Transe total. O lábio de Fernanda em sua nuca a deixava completamente feliz. Muito feliz. Muito feliz. Não existiam mais as más notícias. Não. Defitivamente não. Havia um aroma de uva no ar. Um perfume. E palavras sussuradas na dose certa. Na dose certa. E ela entrava em transe. Transe total. O lábio de Fernanda em sua nuca a deixava completamente feliz. Muito feliz. E molhada. E o abraço que vinha depois era como um gatilho para uma boa noite. Toques. Reflexos. Seios.
APENAS RELÂMPAGOS... O beijo que você me deu sob o sol A chuva molhando os campos de maçã (Sob o Sol - Vibrosensores) Lembro que choveu MUITO naquela tarde. Muito mesmo. Mais do seria normal em qualquer outro dia, em qualquer outro dia que não aquele. Maldito. Tudo estava bem, mas o céu, como puro capricho, decidiu se rebelar. O céu, assim de repente, tornou-se cinza. Absurdamente cinza. Cinza chumbo, quase noite. E choveu muito mesmo naquela tarde. Como jamais eu pensei que poderia chover em qualquer outro dia normal. Em qualquer outro dia que não aquele. Maldito. Lembro-me que eu estava no parque central, quieto, pensando nas verdades que eu havia ouvido e arquitetando uma fuga mirabolante do viciado e repetitivo labirinto caótico que a minha vida havia se transformado. Lembro-me que não estava sol, nem tampouco abafado, e que, portanto, não havia tantas nuvens no céu capazes de provocar aquela tempestade. Não mesmo. Mas, ainda assim tudo aconteceu. Não me dei conta, e,