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SOMENTE O DESCONTROLE...

Assim que entrou no pequeno apartamento em que morava, no centro antigo da cidade, ele jogou as chaves da porta de entrada sobre a mesa com duas cadeiras que enfeitava a sua ridícula sala. Fez a mesma coisa com o seu blusão sujo, porém, ainda que se tratasse de uma roupa, ele sequer tomou cuidado de jogá-lo sobre algum aparador. Deixou-o caído no carpete marrom, empoeirado e velho. Foi direto para a cozinha. Acendeu a luz e abriu o armário. Pegou um copo tipo americano, quebrado nas bordas, e deixou sobre a pia. Abriu uma outra porta do mesmo velho armário da cozinha e sacou uma garrafa de conhaque. Conhaque de última categoria. Conhaque de padaria. Conhaque de esquina. Encheu o copo até a borda e, sem se preocupar com as bordas quebradas, virou o líquido vermelho escuro de uma só vez. Encheu novamente o copo, mas desta vez não virou. Deu apenas um pequeno gole. Tateou dentro de alguma gaveta e achou uma caixa de fósforos, engordurada e pegajosa. Não se importou. Pegou um cigarro dentro do bolso da calça jeans e o acendeu. Deu uma longa tragada e sentiu-se bem. Sentiu-se vivo. Pela primeira vez naquele dia. Pela primeira vez naquele dia, definitivamente. Voltou à sala e ligou seu velho aparelho de som. Ficou surpreso por ele ter ligado de primeira, sem que fosse necessário dar o tradicional soco para fazer seus chips e transistores funcionarem adequadamente. Pensou que, talvez, sua sorte estivesse mudando. Abriu um baú que ficava ao lado das caixas de som e escolheu alguns discos de vinil antigos. Se o mundo fosse acabar, ao menos que acabasse com a trilha sonora perfeita. Escolheu discos de rock. Queria ouvir e esquecer onde estava. Esquecer como foi seu dia. Assim que a agulha pousou sobre o vinil e os primeiros acordes foram saindo das semi-quebradas caixas de som, ele virou o restante do conhaque, apagou o cigarro no já sujo carpete marrom e começou a dançar e a dançar e a dançar. Sem parar. Exaustivamente. Em transe. Rodopiou pela sala, chutou as caixas de som, tirou a camisa, subiu na cadeira, socou o lustre, cruzou o ar, dançou e dançou e dançou, como se o mundo fosse acabar, como se o mundo fosse explodir. Depois de alguns momentos nesse ritmo frenético ele desabou no chão, de uma só vez. Chorando violentamente, pensou no que deveria fazer para mudar a sua vida. O que deveria fazer para retomá-la do ponto em que desistiu dela. Do ponto em que quase desistiu definitivamente dela. Da sua própria vida.

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NUCA

Ela entrava em transe. Transe total. O lábio de Fernanda em sua nuca a deixava completamente feliz. Muito feliz. Muito feliz. Não existiam mais as más notícias. Não. Definitivamente não. Sem contas, protestos, cobranças ou ligações indesejadas. Nada. Nada a perturbar. Existiam apenas os lábios de Fernanda em sua nuca. Lábios deliciosos e densos. Intensos. Sempre pintados de uva. Sempre lindos. E os arrepios. Muitos arrepios. E ela entrava em transe. Transe total. O lábio de Fernanda em sua nuca a deixava completamente feliz. Muito feliz. Muito feliz. Não existiam mais as más notícias. Não. Defitivamente não. Havia um aroma de uva no ar. Um perfume. E palavras sussuradas na dose certa. Na dose certa. E ela entrava em transe. Transe total. O lábio de Fernanda em sua nuca a deixava completamente feliz. Muito feliz. E molhada. E o abraço que vinha depois era como um gatilho para uma boa noite. Toques. Reflexos. Seios.

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