Pular para o conteúdo principal


QUANDO AS PÍLULAS ROSAS JÁ NÃO FAZEM MAIS EFEITO

Ela tomou o primeiro táxi que apareceu. Absolutamente transtornada. Seus olhos estavam vermelhos e borrados, muito borrados, dando uma clara demonstração de que aquela tarde não tinha sido fácil para ela. Nada fácil. O taxista percebeu todo o desespero naquela moça bonita, de cabelos vermelhos, totalmente despenteados, olhos azuis como a tristeza e pele branca, branca como alguma espécie de sonho. Ela pediu, respirando com dificuldade, que ele a levasse até a Consolação. Ele nada disse e pôs-se a observar, pelo espelho retrovisor, todo o desespero daquela moça.

- Quer que eu ligue o rádio? – o taxista perguntou, em voz baixa, sem querer incomodá-la – Às vezes distrai.
- Como quiser. Posso fumar? – ela retrucou.
- Claro. Fique à vontade.

Enquanto observava pelo retrovisor aquela moça de unhas pintadas com esmalte preto acender o seu cigarro, o homem ligou o velho rádio do seu carro e sintonizou a primeira emissora que encontrou. Era uma daquelas emissoras culturais, que tocavam música clássica durante toda a programação. Assim que percebeu isso ele tentou mudar rapidamente a estação, para não deixa-la ainda mais triste, mas foi interrompido por ela – Não, não mude. É ópera. E eu adoro essa ópera.
O taxista a olhou pelo espelho com um breve sorriso no rosto e tirou sua mão do dial do rádio enquanto dizia – Eu logo vi que a moça tinha bom gosto. Logo vi. Olha, vou ser franco, não entendo nada desse tipo de música, mas que é bonito, ah, isso é.
- É lindo – ela retrucou – É como se fosse um sonho bom. É algo como se um anjo descesse à terra somente para nos entreter, nos divertir, nos fazer sorrir, nos fazer bem, somente nos fazer bem. É música para a alma.
- Entendo o que a moça quer dizer. Entendo mesmo. Olha, eu posso ter pouco estudo, ter pouca cultura, mas sei perceber quando uma coisa é verdadeiramente bonita.

Ela começou a chorar ainda mais, sendo interrompida, mais uma vez, pelo motorista.

- A senhora quer que eu mude a música?
- Não. Por favor – ela disse, com dificuldade.
- A senhora quer que eu pare em alguma padaria para tomar um copo de água com açúcar? Olha, é tiro e queda, na hora essa tristeza vai passar – ele disse, tentando confortá-la.
- Não, essa tristeza não vai passar. Nunca vai passar. Nem com água com açúcar, nem com palavras gentis, nem com carinho exacerbado, com nada. Nem com essas malditas pílulas rosas que eu carrego na porra da minha bolsa, que sequer fazem mais efeito.
- A moça toma pílulas rosa? São remédios para sorrir? – ele perguntou, receando estar sendo extremamente atrevido.
Ela sorriu com o comentário e disse, tranqüila – Tomo. Tomo sim, mas acontece que elas já não fazem mais esse efeito. Elas não me fazem sorrir, não me fazem bem, não fazem porra nenhuma. E eu já sabia disso, mas o imbecil do meu médico acabou de confirmar isso. Idiota.
- Eu não entendo – o taxista disse, longe.
- O quê? – ela perguntou, curiosa.
- As pessoas. Até pílulas para fazer os outros sorrirem são feitas e mesmo assim não se vê as lágrimas deixarem de correr pelo rosto de alguns. Se eu fosse a senhora, fazia uma coisa. Jogava fora todo esse lixo e começava a tomar outros tipos de pílulas. Pílulas de sol, pílulas de chuva, pílulas de crianças, pílulas de gente, pílulas de alegria, pílulas de vida, pílulas de ópera, sei lá, qualquer tipo de pílula que não seja rosa. Aposto que a moça vai se sentir bem melhor. Mas, como dizia minha avó, se conselho fosse bom...pronto. Chegamos.

Ela demorou uns instantes até perceber que havia chegado ao destino. Abriu sua bolsa, pegou o dinheiro, pagou o taxista e fez com que ele ficasse com o troco. Abriu a porta e, antes de sair do táxi, olhou para o motorista, ainda com os olhos vermelhos e borrados, e disse, suave – Sabe, o senhor tem vocação para anjo. Obrigado – e desceu de veículo, com um sorriso alegre e confortável.

Ele ficou intrigado e permaneceu ali, com seu carro parado, olhando para aquela moça alta, de cabelos vermelhos, sumindo na multidão sem olhar para trás. Antes de ligar o seu táxi, olhou para o banco de trás e percebeu um pote pequeno, branco, típico daqueles que se usam em drogarias de manipulação. Tirou a tampa meio frouxa e caiu numa gostosa gargalhada de alívio. Era um pote cheio de pílulas rosadas e pequenas. Jogou o mesmo na lixeira do carro, aumentou o volume do rádio que ainda tocava uma ópera e deu a partida, sorrindo muito e cantarolando alto, muito alto, para que todos pudessem ouvir o que uma ópera é capaz de fazer.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ODEIE-ME DOMINATRIX Alguém já viu olhos verdes tão gordos e lindos? Ela era fatal. Uma inebriante Femme Fatale como a canção de Lou Reed e seu underground de veludo. Absolutamente fatal. Fatal e forte e firme e segura e decidida e atrevida e ousada e centrada e todos os demais adjetivos utilizados sem vírgula entre eles. Adjetivos verdeiramente adjetivos. E exatos. Ela era fatal e simplesmente o ignorava. Culpa dele? Claro que sim. Idiota ao extremo, não percebeu que, na verdade, além dos saltos agulha e do corselet preto e do chicote prateado, havia uma garota de olhos gordos e verdes com medo. Insegura e menina demais. Insegura e menina demais para ser deixada de lado. Ele não percebeu. Só isso. Pobre idiota, covarde e medroso. Azar o dele. Agora é tarde para arrependimentos e desculpas. Agora é tarde demais. E nos guardanapos de papel escritos à mão por ele em madrugadas frias e úmidas e bêbadas, repousava a sua culpa e o seu desejo. Não me ignore. Odeie-me dominatrix. E apenas os t

VOYEUR DE TRENS TRISTES

Ela não tinha carro. Definitivamente não. Nada. Carro nenhum. Nada. Ela não tinha carro e dependia apenas das suas próprias pernas para andar. Apenas dela e das suas longas pernas. Só transporte público. E ruim. Péssimo transporte público. Ela dependia dele e andava em trem, ônibus, táxi, bicicleta, a pé, de um lado para outro por toda a cidade. De um lado para outro. Por toda a cidade. E nas suas viagens loucas , longas e insuportáveis, ao invés de ficar como uma idiota no fone de ouvido e num celular vagabundo ela apenas observava. A tudo e a todas as situações. Observava a tudo e a todos com a maior esperteza, com a maior atenção. Esperta. Nada de malditos fones de ouvidos brancos e joguinhos sem graça. Nada de música ruim nos headphones. Nada de música ruim. Nunca. Nem jogos idiotas. Ela gostava de observar. E era boa nisso. Muito. Ela parecia boba. Mas não era. Longe disso. Muito longe disso. Boba nunca. Nunca. Ela era muito, muito,

Going Down

leia e ouça: lou reed || going down “... Time's not what it seems. It just seems longer, when you're lonely in this world. Everything, it seems, Would be brighter if your nights were spent with some girl Yeah, you're falling all around. Yeah, you're crashing upside down. Oh, oh, and you know you're going down For the last time …” Lou Reed || Going Down E o sonho avançava. Apenas avançava. A noite tinha apenas começado. … - Ei mocinha. Mocinha? Me ouve? Ela chacoalhou os cabelos castanhos desgrenhados, um monte de nós sem sentido, apenas ela, virou o rosto confuso e encarou aquele sujeito grande, intimidador, com cara de bravo e que estava imóvel à sua frente, um verdadeiro brusco naquele cenário. - Então, me ouve? Está me ouvindo? - aquele grandalhão insistiu - Me ouve, porra? - disse, de modo grosseiro. Ela olhou com um tanto de medo e sem saber exatamente o que fazer, o que dizer, o que mexer, o que responder, nada disse. Apenas, nada disse. - Você entende? É surd

SONHOS DE UMA MADRUGADA MOLHADA DE VERÃO

- Sonha comigo? – ele pediu quase tolo, quase infantil. - O quê? – ela respondeu – Pirou? O calor derreteu o pouco que resta do seu cérebro pequeno? – disse irônica. - Sonha comigo? Sonha? – ele pediu. - Como assim “sonha comigo”? Você acha que eu escolho os devaneios que tenho durante a madrugada? Acha que consigo selecionar com o que vou sonhar? – ironizou. - Talvez. Se você quiser muito, pode até conseguir. Quem sabe? Ela sorriu e fez um carinho fofo em seus cabelos curtos. Admirou seus olhos verdes e apenas sorriu. - Por favor? – ele insistiu – Você me disse que sonhou comigo outra noite. Porra, quem sabe consegue repetir a façanha. Vou ficar muito feliz. Muito mesmo. - Você é um idiota de verdade – ela disse com carinho. - Mas não basta sonhar. Tem que me contar os detalhes depois – ele afirmou como um babaca apaixonado. - Vou tentar. Prometo que vou tentar. Antes de tomar o meu Lexotan e dormir como um anjo, vou mentalizar muito para ter um sonho cont
COMO UMA CANÇÃO DE LAURYN HILL Então, ela se pergunta, o que aconteceu com todos aqueles momentos? Alguém pode explicar? Alguém pode explicar para essa menina doce, gentil e bem humorada, de que serviu todo aquele amor, aquele desespero, aquela vontade insana e adolescente de querer ficar junto, de querer estar junto, de querer comer junto, viver junto, enfim, morrer junto? Aquele desejo doentio e saudável de viver duas únicas vidas em uma só? Alguém pode explicar essa porra? Porquê, até onde eu sei, não existe um manual de instruções de como proceder em caso de falência múltipla de sentimentos. Não, meu caros amigos, definitivamente não há um manual de instruções que possa ajudar-nos a entender todas as razões sem razão, todos os desejos sem recíproca, todas as cores do universo. Não, mas nem fodendo. As brigas, os momentos de raiva, o medo, desespero, a vontade de fugir, enfim, todos os desequilíbrios da mente não vem com um pequenino, um simples, um maldito manual de instruções. E e