Pular para o conteúdo principal

Não Há Mais O Suor Nas Mãos


leia e ouça: the smiths || asleep (piano cover - youtube channle Erzsébet Abyzou)

Silêncio. 

Ela olhou ao redor da sala e havia apenas silêncio.

O silêncio intenso reinava na sala. A ausência de ruídos contrastava com um solene objeto deixado no canto da sala. Um piano. Sim, apesar do silêncio quase absoluto mortificando o ambiente, o piano estava lá. Intimidador, quieto, solene, impositivo, marcante e… esperando, apenas esperando por ela, como esteve por muito tempo. Tempo demais que ela deixou passar sem perceber. 

Ela olhou ao redor da sala e havia apenas silêncio. Esfregou as mãos e percebeu o frio. Geladas. As suas mãos pequenas estavam incrivelmente geladas. Ela estava com as mãos polares como nunca. Ainda bem que minhas unhas estão pintadas em vermelho - ela pensou em um momento banal - Descascadas? Ok, mas o vermelho esconde o roxo do frio, desse gelo, desse medo - continuou em pensamento, lembrando, ainda mais uma vez, como suas mãos estavam frias. Sensação desconfortável de frio mas, ainda assim, naquele instante, de alguma forma, não havia nada em sua mente além de paz.

Muita paz.

Ela estava feliz e contente como há tempos desejava estar. Há tempos desejava estar. Ela pensou em como havia lutado, brigado, gritado, estressado, escrito, chorado, sentido, sofrido, enfim, como havia vivido e feito tudo o que fez para estar ali. Estar exatamente naquela sala para aquele exato instante.

Sozinha na sala e em frente ao piano.

O seu piano.

A sua vida.

Ela deu um suspiro de alívio e sorriu de leve ao lembrar da sua mãe exigindo que ela aprendesse piano quando criança. Sorriu da tolice mas ficou grata ao lembrar dela. Agradeceu por tanto, de alguma forma, onde quer que ela estivesse, em razão da importância que aquele instrumento musical teve na sua vida. 

Suspirou novamente. 

Deixou sua mãe em alguma outra gaveta da sua memória e voltou sua atenção à outra. Outra gaveta, outras memórias mas de dor. Dor. Várias dores. A mesma vida. Por um breve instante, ela relembrou o que não queria. Um passado não tão distante mas, enfim, passado. Apenas… passado. Algo que não existia mais. Presente? Sim, o presente estava lá, ao seu redor naquela sala. Ao seu alcance. Ela respirou fundo e caminhou lenta em direção ao instrumento. O reflexo dos seus olhos verdes na tampa do piano causado pela iluminação natural das velas espalhadas pelo ambiente era uma cena adorável. Uma cena bela e emocionante a quem quer que a testemunhasse. Ela respirou ainda mais fundo, ajeitou seus curtos cabelos e fechou os olhos. Sentou-se em frente ao teclado, entrou em uma espécie de breve transe particular e deitou com delicadeza os seus dedos finos e curtos nas teclas brancas e pretas do instrumento. Os dedos, espertos, sabiam exatamente o que precisava ser feito e começaram a deslizar. Um início sutil e suave mas, aos poucos, ganhando velocidade. A mesma velocidade em que sua vida mudou. Os pés descalços, lentamente, acompanharam o movimento das mãos e iniciaram uma dança junto aos pedais. Dança deliciosamente sincronizada. Veloz. Plena. Intensa. VIVA. E ela tocou. 

Tocou.

Ela tocou e tocou e tocou. Muito. Verdadeira, com intensidade, profundidade e beleza. Ela tocou, E, à medida em que mergulhou no som gritado e desabafado pelas cordas mágicas do piano, o seu corpo, em delírio, produziu um espetáculo. Belíssimo espetáculo. Ela dançou uma dança bonita, em que pés, mãos, cabelos e olhos fechados formaram uma coreografia de beleza e prazer. Uma verdadeira celebração da vida. Uma celebração ao amor próprio. Celebração da beleza em que a sua vida se transformou. Libertação.

Enfim leve, enfim doce, não invisível, enfim ela, enfim segura, enfim livre, enfim… feliz.

Muito feliz.

E agora com as mãos quentes, ela tocou.

Tocou, tocou e tocou por horas e horas a fio. Sempre com um sorriso nos lábios, os olhos fechados e a certeza das escolhas. As suas escolhas.

E ela apenas tocou.

Quanto tempo?

Tempo?

E quem se importa?

A liberdade do agora contido naquele momento, naquela sala, naquele piano e naquele coração era suficiente.

Muito mais do que o suficiente.

Muito mais.

Painting by William Arthur Chase (The Keynote 1915)





 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Going Down

leia e ouça: lou reed || going down “... Time's not what it seems. It just seems longer, when you're lonely in this world. Everything, it seems, Would be brighter if your nights were spent with some girl Yeah, you're falling all around. Yeah, you're crashing upside down. Oh, oh, and you know you're going down For the last time …” Lou Reed || Going Down E o sonho avançava. Apenas avançava. A noite tinha apenas começado. … - Ei mocinha. Mocinha? Me ouve? Ela chacoalhou os cabelos castanhos desgrenhados, um monte de nós sem sentido, apenas ela, virou o rosto confuso e encarou aquele sujeito grande, intimidador, com cara de bravo e que estava imóvel à sua frente, um verdadeiro brusco naquele cenário. - Então, me ouve? Está me ouvindo? - aquele grandalhão insistiu - Me ouve, porra? - disse, de modo grosseiro. Ela olhou com um tanto de medo e sem saber exatamente o que fazer, o que dizer, o que mexer, o que responder, nada disse. Apenas, nada disse. - Você entende? É surd...

Quando Você Ama…

  leia e ouça: surf curse || freaks “...Don't kill me just help me run away From everyone I need a place to stay Where I can cover up my face Don't cry, I am just a freak I am just a freak I am just a freak I am just a freak…” (Surf Curse || Freaks) Quando você vive, você erra. Todos nós. Todos. Todos nós erramos, de um jeito ou de outro. Faz parte. Quem nunca errou? Quem nunca? Só quem não viveu. Quando você vive, você se expõe e acaba errando, cedo ou tarde. Mente quem diz que nunca errou, uma vez que certamente também errou em algum momento da vida e tenta negar isso. Eu? Se eu errei, omiti e menti? Sim. Certamente. Muito. Mais do que seria razoável, muito mais do que seria razoável. E só os Deuses sabem como foi difícil e errado e como me arrependo. Arrependimento? Muito. Arrependimento real e verdadeiro. Mas, a verdade é o mais importante. Sempre. E demorei a entender isso. Demorei MUITO. Muita porrada para entender isso. Muita porrada para entender isso. A transparência. ...

Você

leia e ouça: U2 | bad Você. Você é intensa demais, e eu a amo. Muito. Você. Sim, você mesmo, você sabe a quem me refiro: VOCÊ! Você tem os cabelos mais desgrenhados, bagunçados e divertidos do mundo. E eu amo. Você. Cada detalhe, cada aroma, cada toque, cada TUDO. Nós. Tem os olhos mais verdes do mundo, e eu a amo. Amo. Amo você. Minha esmeralda. Minha pequena. Minha mãozinha guia. Você. Você. Apenas você! A mulher que mais merece ser cafuneada no universo, na galáxia, em tudo. Toda hora, todo dia, todo tempo. Você. Eu a amo. Você. Você mesmo. Tem força, tem garra, tem voz, tem presença, tem vida, tem alegria, tem coerência, tem sorriso, tem empatia, simpatia, tem tudo. Pequena, mas gigante. Você. Eu sou muito honrado de receber e dar seus super likes . Te laqueio todo dia, toda hora. Você é simplesmente essencial, especial, única. Você… simplesmente e unicamente VOCÊ existe para mim. Nada mais. Mais ninguém, E por mais burrices que eu faça, que eu repita, que eu erre, imbecil que so...

COMO A PÁGINA VIRADA E QUASE ESQUECIDA DE UM LIVRO BOM

- Você acha mesmo? – ela perguntou, com uma expressão de puro espanto. Ele desviou o olhar. Olhou para o teto, tentou disfarçar as lágrimas. Sem sucesso. Depois de um minuto de silêncio sepulcral ela insistiu - Então, eu te perguntei. Por favor, me responda porra. Você acha mesmo? Acredita mesmo no que acabou de me dizer? Acha que vou acreditar que você não estava transando com a maldita nos últimos tempos? Que não se envolveu com aquela vagabunda e me passou para trás. Acha que vou acreditar que você ainda me quer? Ele, finalmente, abaixou a cabeça e a encarou bem nos olhos. Olhos frios e de um verde simplesmente lindo. - Vai, fala! – ela insistiu um tanto impaciente, muito irritada. - Sim. Acho. Não só acho como tenho absoluta certeza – ele, finalmente, respondeu, sentindo na garganta a dor e o peso de estar mentindo verdadeiramente. Ela levou as mãos à cabeça em absoluto transtorno. Não conseguia imaginar a razão de estar vivendo aquela cena – Você é um tre...

FIREWORKS

- Ai, que merda! - ela gritou, visivelmente irritada. - Tá louca? - ele respondeu, surpreso com o tom de voz dela. - Odeio esta música. DJ idiota - ela emendou - O Clube Varsóvia já foi melhor. Imbecil de escolher isto para o ano novo. - Você é louca? - ele perguntou, sério. - Não, porra, sou louca não. - Mas parece. Caralho. Há quanto tempo você vem no Varsóvia e NUNCA disse isso. O que há? Algum problema? - ele perguntou. Ela balançou a cabeça e seus olhos ficaram cheios de água - Nada - ela disse e confirmou - Nada. Não aconteceu porra nenhuma. - Como assim, nada? - ele questionou - Desde quando você fica transtornada assim? Por tão pouca coisa? Desde quando uma canção escolhida por um DJ idiota te tira do sério? - Nada, puta que o pariu. Nada. Pode ser? - ela disse, bastante brava. - Qual seu problema Lisa? Posso saber? Ela apenas abaixou a cabeça. - Me diz - ele insistiu. Ela ficou em silêncio por alguns instantes e emendou - Hoje é primeiro de Janeiro. Ele a olho...