Ela pensou que seria possível esquecer os seus problemas. Todos os seus problemas. Todos. Ela realmente acreditou e pensou que seria fácil. Simples como tomar um destilado forte, bebericar um café sem açúcar ou descolar uma anfetamina qualquer. Acreditou que pudesse esquecer tudo e, para tanto, apenas alguns trocados no bolso e um carro bastaria. Um carro que a levasse para longe dali e pudesse fazê-la seguir em frente e rasgar todas as estradas possíveis, todos os caminhos reais ou mesmo imaginários. E assim ela fez. Em uma sexta-feira úmida e cinza - como os seus olhos aliás - ela acordou bem cedo. Era madrugada, quase manhã. Encheu a sua mochila gasta de tantas viagens com uma porção de maços de cigarro, alguns pendrives com as suas músicas prediletas, livros de poesia barata e, claro, fotos antigas. Fotos suas e de seus amigos. Fotos que ela adoraria ver, caso sentisse saudade. Ela detestava ver fotos digitais e aquele conjunto de fotos impressas era um tesouro. O seu tesouro para momentos difíceis. Entrou em seu carro e deu a partida. Ficou muito feliz por ele funcionar de primeira e foi. Foi sem destino, sem saber exatamente para onde ir, sem saber se iria voltar (ou querer voltar), mas sabendo exatamente de onde estava partindo, o que deixava para trás. E ela rodou e rodou e rodou por várias estradas, por vários quilômetros e por vários dias. Vários. Parou, vez ou outra, em alguma pousada ou pensão ou qualquer hospedagem barata para descansar. No entanto, não conseguiu dormir em nenhuma delas. Tentou evitar. Dormir, ela sabia, podia fazê-la sonhar e trazer de volta o que ela queria esquecer e, na verdade, isso era o que ela menos queria naqueles dias. Pesadelos. Andava com medo deles. Muito medo. E, após alguns dias, ela percebeu que não poderia mais simplesmente se enganar e rodar por aí. Por um instante, ela se deu conta de que era impossível simplesmente fugir dos seus problemas desta maneira. Percebeu o que era óbvio e entrou em um estado de desespero quase sufocante. Um sentimento absolutamente angustiante. Ao invés de voltar, resolveu acelerar ainda mais o seu carro, como se fosse possível descolar da sua própria sombra e deixar o que quer que fosse para trás. Mas, não. Não era possível. Definitivamente não era... De repente, como se o acaso conspirasse e os Deuses fossem ainda mais cruéis do que já são (e eles são, claro que são), ela teve que frear bruscamente. À sua frente, para extrema surpresa e grande ironia, não havia mais para onde ir. À sua frente havia apenas uma estrada fechada e uma ponte parcialmente destruída por uma chuva de verão intensa. Não havia mais para onde ir naquela estrada. Simplesmente não havia mais. Ela então respirou fundo e suspirou. Olhou ao redor e pensou por um instante. Pensou de verdade como há tempos não fazia. Pensou por instantes que pareceram séculos. Séculos. Enfim, ela sorriu. O desespero passou e a angústia também. Ela sorriu. Linda e rápida, decidiu que não iria perder para a realidade. Ela não iria desistir do seu plano de viver e não iria voltar a algo fadado a não dar certo. As coisas iriam mudar. Tinham que mudar e isso estava decidido e foda-se. Ela então, mesmo sem a estrada livre à sua frente e ao invés de simplesmente dar meia volta com o seu carro naquele asfalto escuro e cheio de buracos, decidiu ficar por ali. Desligou o carro e os faróis, aumentou o rádio no último volume, desceu do veículo, sentou sobre o capô imundo de pó e vento, acendeu um cigarro e ficou por lá, sorrindo sozinha, apreciando o pôr do sol e sentindo o frio do começo da noite na estrada aberta e deserta. Não seria, com certeza, naquele instante, naquele exato momento, mas a ponte à sua frente ainda iria se reerguer para ela poder dar o fora dali e seguir em frente. Ela iria seguir em frente e continuar sem olhar para trás. Ainda que dependesse apenas da sua própria força, força essa que ela não fazia a menor ideia da onde tiraria. Fato é que a ponte iria se reerguer. Sim. E ela então iria seguir em frente para não voltar ao ponto em que estava. E ela estava certa disso. Muito certa disso. A única certeza que tinha. A única...
Eu já falo mesmo em me mudar..."
(A Ponte - Banda Casino)
(conto adaptado do original publicado em 11.06.2003
Estradas Vazias E Pontes No Chão
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