Pular para o conteúdo principal

MADRUGADA


Ela tinha receio das madrugadas.

Muito.

Muito receio ou muito medo?

Receio?

Medo?

Que diferença faz?

Tudo ao mesmo tempo.

Tudo ao mesmo tempo sempre.

Sem explicação.

Sem definição.

Que diferença faz?

Tudo o que se pode ter.

Tudo o que se pode ter.

Tudo o que não se pode ver.

Ao menos em uma noite de tempestade.

Forte tempestade.

Porrada de chuva.

Insônia e janelas castigadas pelas gotas gordas caindo do céu.

E os olhos abertos em plena escuridão.

Absolutamente abertos.

Olhos abertos e tristes.

Bastante abertos.

Bastante verdes.

Bastante tristes.

E ela tinha receio.

Muito receio.

Receio das velas acesas que ela espalhou em seu quarto, sobre aparadores vagabundos e baratos. Bem baratos. Ainda mais vagabundos.

Receio da chuva, do vento que castigava as janelas e, talvez, se fosse o caso, da falta de luz.

Da total falta de luz, que sempre vinha.

Implacável.

E, assim, ela tinha receio das madrugadas.

Muito receio das madrugadas.

Muito, mas muito receio mesmo, pois quando se deita, se sabe o que fez.

Em cada minuto do dia.

Você tem a exata certeza do que fez e de todas as burradas que fez.

Todas.

Todas as burradas.

Basta um travesseiro e uma cama solitária.

E nem precisa ser quente.

Nem precisa.

E entre relâmpagos, tempestade insana e uma noite escura, ela ficou deitada ouvindo seu vinil antigo do The Clash.

Algo raro e démodé.

Nada de mais.

Nada de mais.

Nada de menos.

Pensamentos e vontades e arrependimentos.

Muitos pensamentos, muitas vontades e muitos arrependimentos.

Uns mais e outros muito menos.

E, de madrugada, à luz de velas em seu quarto, o telefone tocou.

Uma, duas, três, quatro vezes.

Ela?

Não atendeu.

O sono a pegou.

Cruel e cruel.

Do outro lado da linha?

E desligou e jurou que a esperaria.

Pelo tempo que for.

Sem tempestades relâmpagos e noites escuras.

Apenas velas e olhos acesos.

Muito acesos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PASSE-ME O SAL PARA EU BOTAR NA SOBREMESA?

- Não há nada a desculpar – ele disse pouco tranquilo, muito mentiroso, entre os copos de vodka, as mesas e o barulho do Clube Varsóvia, tentando desviar do olhar adorável, inesquecível e maravilhoso daquela garota à sua frente. Ele a amava. Ela o olhou com ternura e amizade e fez um carinho breve e gentil no seu cabelo. Por instantes, breves instantes, ela lembrou de todo o afeto e paixão que sentiu por ele no passado. Todo o carinho, o afeto e o amor que sentiu por ele em um passado não tão distante. Como foram felizes. - Fica tranquila – ele disse e continuou - Nada a desculpar mesmo. Tudo em ordem do meu lado – ele prosseguiu – Você gosta de MPB mesmo. Eu detesto – completou, com um sorriso. - Você mente mal. Muito mal mesmo sabia? Quase um canastrão – ela brincou e continuou – Esqueceu que te conheço há um tempinho? - Muito tempo? – ele perguntou, tentando disfarçar, enquanto acendia um Marlboro – Dentre as mentiras da vida, duas nos revelam mais – recitou, citando a antiga c...

Going Down

leia e ouça: lou reed || going down “... Time's not what it seems. It just seems longer, when you're lonely in this world. Everything, it seems, Would be brighter if your nights were spent with some girl Yeah, you're falling all around. Yeah, you're crashing upside down. Oh, oh, and you know you're going down For the last time …” Lou Reed || Going Down E o sonho avançava. Apenas avançava. A noite tinha apenas começado. … - Ei mocinha. Mocinha? Me ouve? Ela chacoalhou os cabelos castanhos desgrenhados, um monte de nós sem sentido, apenas ela, virou o rosto confuso e encarou aquele sujeito grande, intimidador, com cara de bravo e que estava imóvel à sua frente, um verdadeiro brusco naquele cenário. - Então, me ouve? Está me ouvindo? - aquele grandalhão insistiu - Me ouve, porra? - disse, de modo grosseiro. Ela olhou com um tanto de medo e sem saber exatamente o que fazer, o que dizer, o que mexer, o que responder, nada disse. Apenas, nada disse. - Você entende? É surd...

NOSSO SUOR SE MISTUROU DEMAIS...

- Nosso suor, se misturou demais ... – ela cantarolou baixinho. Bem baixinho, emitindo sinais, mas não de propósito. Ele ouviu e respondeu de pronto – Música antiga, hein? Está ficando saudosa ou velha mesmo? – perguntou grosso, tosco, otário, como sempre fez, sem desviar os olhos do seu jornal. Ela apenas sorriu. Sabia que ele não era assim. Ele apenas se fazia – e gostava muito disso - de filho da puta. - Canção antiga. Vintage total. Vintage total. Mas vintage tá na moda , não é mesmo? – ele emendou – Veja o bando de velhos ouvindo discos de vinil por aí. - Você é um babaca – ela respondeu. Ele apenas sorriu. Tinha certeza disso. - Nosso suor, se misturou demais ... – ela cantarolou novamente. Desta vez não tão baixinho, não tão tímida. Não tão baixinho, nem um pouco tímida. Forte. Segura. Decidida. Sabia o queira, mas não achava o alvo. - Também acho – ele concordou, fechando o jornal com média força e suspirando forte – E não sei exatamente o que fazer. D...